Içá, a formiga que é um pitéu da culinária

Quando era criança, entre os meses de outubro e dezembro, quando ocorre a revoada de acasalamento das formigas-cortadeiras saúvas do gênero Atta, eu e meus amigos saíamos para os pastos atrás de formigueiros para "catar" tanajuras ou içás. Normalmente as formigas saem do formigueiro em dias de sol após a chuva. Então o provérbio "Sol com chuva, casamento de viúva", no sul de Minas e Vale do Paraíba é diferente: "Sol com chuva, dia de comer saúva!"

Após o acasalamento os machos, conhecidos como bitus ou sabitus, morrem, e as fêmeas fecundadas vão em busca de um lugar adequado para criar seu próprio formigueiro, momento em que são coletadas para virar iguaria. Quando o içá pousa em um terreno propicio, arranca as próprias asas e segue caminhando até o melhor local da área, ficando ainda mais vulnerável aos predadores. Por isso menos de 1% consegue alcançar a idade adulta do formigueiro.

A farofa de içá é um acepipe feito com a parte inferior do abdômen da formiga (todo mundo chama de "bundinha"), que, segundo os nutricionistas, contém cerca de 30% de gordura e 40% de proteínas. De fato, se você espremer a bundinha sai um líquido branco semelhante ao da jabuticaba.

Isso serviu aos detratores para maldizer que o líquido é pus de gente morta. Nada mais inverídico. Na verdade o içá se alimenta de flores, então ele tem bastante proteína vegetal e minerais como cálcio, ferro e tem vitaminas do complexo B.

Só de pensar de comer insetos, faz a maioria das pessoas arquearem as sobrancelhas. Mas, por outro lado, comemos lagostas e camarão, que tem mais semelhanças com a barata doméstica do que muitos outros insetos, então comer formiga não é algo tão extraordinário assim.

O consumo de içá vem da cultura indígena. Os índios assavam as formigas junto com amendoim, porque, com efeito, elas tem um sabor semelhante ao de amendoim torrado com camarão, além de exalar um cheiro característico agradável enquanto está no fogo. Nos dias atuais é um hábito da região sul de Minas e do Vale do Paraíba, típico da comida caipira do interior destes estados.

Geralmente as bundinhas são assadas ou fritas em panelões de ferro e misturadas com farofa. Mas em restaurantes gourmets elas são servidas fritas na manteiga e o prato costuma ser bem caro. Na verdade, até nos botecos as porções de içá em geral tem preços abusivos porque é um item raro e difícil de coletar. Em entrevista para o G1, um catador de formiga de Taubaté, disse que vende cada garrafa PET cheia com o inseto por pelo menos 200 reais.

As tanajuras também são apreciadas no nordeste brasileiro, sendo iguaria em mercados públicos como o de São José, no Recife. A captura, o modo de preparo e a degustação da formiga são tombados como patrimônio imaterial do povo do município de Tianguá, localizado na Chapada da Ibiabapa, no Ceará.

O escritor Monteiro Lobato era um grande admirador da iguaria, a qual apelidou de "caviar de Taubaté". Outro famoso também apreciador de içá é Mauricio de Sousa, que já retratou a tradicional caça e sua respectiva culinária nos quadrinhos da "Turma do Chico Bento".

Infelizmente esse é um pitéu que você jamais vai encontrar no mercado perto de sua casa. Geralmente seria mais fácil encontrar "catadores" vendendo nas épocas em que elas "caem", ou talvez em alguns restaurantes de comida típica no interior de Minas ou São Paulo.

Você também pode "catar" içás quando elas saírem para o acasalamento, que no sudeste do país geralmente ocorre entre os meses de outubro a dezembro, e no nordeste entre janeiro e março. Elas sempre saem das tocas em dias de sol que sucedem os chuvosos: "Afinal, sol com chuva, dia de comer saúva!"